terça-feira, 29 de setembro de 2009

Depoimento daquele que não foi visto

A. Elisa

“Eu nunca a tinha visto andando pela universidade. Ela andava sozinha, mas parecia que já conhecia bem aquele lugar. Parecia deslocada e ao mesmo tempo bem ciente de tudo. Ela tinha um cabelo meio preso num rabo de cavalo, porque ainda era tão curto que o prendedor não o segurava todo. Ela estava de tênis e tinha uma bolsa tão grande que eu fiquei imaginando as coisas que ela carregava ali dentro. A primeira vez que eu a vi, ela estava sentada no banco em frente a biblioteca e, de repente, vejo que ela entra na minha turma e escolhe uma das primeiras cadeiras encostadas na parede para sentar. Abre a bolsa, e nesse momento presto bem atenção nela, até porque percebo que ela mal olhou para as pessoas que estão dentro da sala, parece não se importar em conhecer os outros. De dentro daquela enorme bolsa, ela tira um livro, e de relance consigo ler o título. Ela gosta de literatura brasileira. Enquanto o professor não chega, observo ela lendo atentamente o livro sem se importar com o barulho do som emitido pelo celular de Joaquim ou da conversa sobre o jogo do Naútico entre Moacyr e o Bento. Ela entrou numa sala onde o homem é maioria, e não pareceu se importar com isso. Procuro alguma brecha, algum momento em que ela respire para poder puxar uma conversa, mas ela parece tão compenetrada naquelas palavras que até sinto um pouco de inveja, por não ser tão interessante assim. De repente ela para, desfaz o rabo no cabelo e o faz novamente, e nesse baixar e levantar dos cabelos vejo que ela tem uma tatuagem de borboleta na nuca. Aproveito a oportunidade e me aproximo, questiono se ela é de outro período e faço alguma pergunta besta sobre o livro que está em suas mãos. Inesperadamente, vejo que ela conversa, e como, me fala sobre a peregrinação dela ao longo dos anos para concluir o curso e que por conta disso não tem uma turma específica, sobre o autor que lê e começamos a discutir sobre a história do livro. Em poucos minutos, já discordamos e concordamos em vários aspectos. Às vezes me pego olhando pra ela sem nem prestar atenção no que me diz. Ela articula tão bem as palavras e sabe convencer a gente, que muitas vezes termino concordando com a idéia dela sem nem mesmo saber qual foi. Acho que fui a única pessoa que tive contato com ela da turma, porque sempre que nos encontramos na sala ela só me cumprimentava e conversava sobre o novo livro que está lendo. Ela tem um plano de ler dois livros por mês. O que me espanta, é que além disso, ela lê todos os textos para a aula, debate temas com o professor e tira boas notas nas avaliações. Ela também me disse que faz outra faculdade e que esse semestre se forma, e que por isso tem corrido muito com o trabalho de conclusão de curso. Ela está filmando um documentário junto com três amigas. Enquanto ela se empolga contando os apuros das gravações, pego um livro na biblioteca e indico a ela. Ela olha e diz que já o tinha lido e pergunta o porquê dessa indicação. Me engasgo, não esperava por essa pergunta. A verdade é que o livro fala sobre estudos de psicanálise em relação ao amor, e tinha achado interessante porque no blog que ela escreve, só se fala de amor. Mas não podia admitir que acompanhava o blog dela semanalmente, que esperava ansiosamente por um novo texto, na ânsia de através da leitura, entender um pouco mais do seu mundo. Então simplesmente digo que Lou Salomé foi uma mulher à frente do seu tempo, igualzinho a ela. É engraçado, é muito difícil elogiá-la. Ela sempre tem uma desculpa ou um porém para os elogios que faço e quando aceita dá um risinho de canto de boca e diz bem baixinho, que eu quase não ouço seu “obrigado”. Eu queria ter tido mais tempo com ela, as noites de estudo na biblioteca e as conversas sobre os inúmeros livros que ela leu ao longo do período me fizeram perceber que ela é única, porque ela está ali e não se importa com ninguém, se não fosse por mim a gente não teria ficado amigo. Parece que a solidão é amiga dela. Hoje ela está em outra turma, como previamente já havia me avisado, e nos encontramos sempre às pressas, já que estou redigindo a minha monografia e ela ainda terminando as cadeiras de educação. Mas eu nunca vou esquecê-la. Aquela imagem dela sentada em frente ao banco da biblioteca com aquele tênis colorido e a bolsa gigante ficará marcada para sempre na minha memória. Durante todo o tempo em que tivemos contato eu sempre demonstrei meu interesse por ela, mas ela nunca retribuiu. Na verdade, eu acho que ela nunca percebeu. Perdida dentro dos livros, ela não viu que eu estava ali, o tempo todo, só esperando ela me olhar.”

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O mundo é travesti

A. Jabor

Vou falar um pouco de mulher, eu que mal as entendo na vida. Não falarei das coxas e seios e bumbuns... Falo de uma aura mais fluida que as percorre.
Gosto do olhar de onça, parado, quando queremos seduzi-las, mesmo sinceramente, pois elas sabem que a sinceridade é volúvel, não perdura. Um sorriso de descrédito lhes baila na boca quando lhe fazemos galanteios, mas acreditam assim mesmo, porque elas querem ser amadas, muito mais que desejadas. Elas estão sempre fora da vida social, mesmo quando estão dentro.
Podem ser as maiores executivas, mas seu corpo lateja sob o tailleur e lá dentro os órgãos estranham a estatística e o negócio. Elas querem ser vestidas pelo amor. O amor para elas é um lugar onde se sentem seguras, protegidas.
O termômetro das mulheres é: "Estou sendo amada ou não? Esse bocejo, seu rosto entediado... será que ele me ama ainda?" A mulher não acredita em nosso amor. Quando tem certeza dele, pára de nos amar. A mulher precisa do homem impalpável, impossível. As mulheres têm uma queda pelo canalha. O canalha é mais amado que o bonzinho. Ela sofre com o canalha, mas isso a justifica e engrandece, pois ela tem uma missão amorosa: quer que o homem a entenda, mas isso está fora de nosso alcance. A mulher pensa por metáforas.
O homem por metonímias
. Entenderam? Claro que não. Digo melhor, a mulher compõe quadros mentais que se montam em um conjunto simbólico sem fim, como a arte. O homem quer princípio, meio e fim. Não estou falando da mulher sociológica, nem contemporânea, nem política. Falo de um sétimo órgão que todas têm, de um "ponto g" da alma.
Mulher não tem critério; pode amar a vida toda um vagabundo que não merece ou deixar de amar instantaneamente um sujeito devoto. Nada mais terrível que a mulher que cessa de te amar. Você vira um corpo sem órgãos, você vira também uma mulher abandonada.
Toda mulher é "Bovary"... e para serem amadas, instilam medo no coração do homem. Carinhosas, mas com perigo no ar. A carinhosa total entedia os machos... ficam claustrofóbicos. O homem só ama profundamente no ciúme. Só o corno conhece o verdadeiro amor. Mas, curioso, a mulher nunca é corna, mesmo abandonada, humilhada, não é corna. O homem corneado, carente, é feio de ver. A mulher enganada ganha ares de heroína, quase uma santidade. É uma fúria de Deus, é uma vingadora, é até suicida. Mas nunca corna. O homem corno é um palhaço. Ninguém tem pena do corno. O ridículo do corno é que ele achava que a possuía. A mulher sabe que não tem nada, ela sabe que é um processo de manutenção permanente. O homem só vira homem quando é corneado.
A mulher não vira nada nunca. Nem nunca é corneada... pois está sempre se sentindo assim. Como no homossexualismo: a lésbica não é viado.
A mulher é poesia. O homem é prosa. Isso não quer dizer que a mulher seja do bem e o homem do mal. Não. Muita vez, seus abismos são venenosos, seu mistério nos mata. A mulher quer ser possuída, mas não só no sexo, tipo "me come todinha". Falam isso no motel, para nos animar. O homem é pornográfico; a mulher é amorosa. A pornografia é só para homens. A mulher quer ser possuída em sua abstração, em sua geografia mutante, a mulher quer ser descoberta pelo homem para ela se conhecer. Ela é uma paisagem que quer ser decifrada pelas mãos e bocas dos exploradores. Ela não sabe quem é. Mas elas também não querem ser opacas, obscuras. Querem descobrir a beleza que cabe a nós revelar-lhes. As mulheres não sabem o que querem; o homem acha que sabe.
O masculino é certo; o feminino é insolúvel. O homem é espiritual e a mulher é corporal. A mulher é metafísica; homem é engenharia. A mulher deseja o impossível; desejar o impossível é sua grande beleza. Ela vive buscando atingir a plenitude e essa luta contra o vazio justifica sua missão de entrega. Mesmo que essa "plenitude" seja um "living" bem decorado ou o perfeito funcionamento do lar. O amor exige coragem. E o homem... é mais covarde. O homem, quando conquista, acha que não tem mais de se esforçar e aí , dança...
A mulher é muito mais exilada das certezas da vida que o homem. Ela é mais profunda que nós. Ela vive mais desamparada e, no entanto, mais segura. A vida e a morte saem de seu ventre. Ela faz parte do grande mistério que nós vemos de fora, com o pauzinho inerme. Ela tem algo de essencial, tem algo a ver com as galáxias. Nós somos um apêndice.
Hoje em dia, as mulheres foram expulsas de seus ninhos de procriação, de sua sexualidade passiva, expectante e jogadas na obrigação do sexo ativo e masculino. A supergostosa é homem. É um travesti ao contrário. Alguns dizem que os homens erigiram seus poderes e instituições apenas para contrariar os poderes originais bem superiores da mulher.
As mulheres sofrem mais com o mal do mundo. Carregam o fardo da dor histórica e social, por serem mais sensíveis e mais fracas. Os homens, por serem fálicos, escamoteiam a depressão e a consciência da morte com obsessões bélicas, financeiras ou políticas. As mulheres agüentam firmes a dor incompreendida. O mundo está tão indeterminado que está ficando feminino, como uma mulher perdida: nunca está onde pensa estar. O mundo determinista se fracionou globalmente, como a mulher. Mas não é o mundo delicado, romântico e fértil da mulher; é um mundo feminino comandado por homens boçais. Talvez seja melhor dizer um mundo travesti. O mundo hoje é travesti.

sábado, 19 de setembro de 2009

É dor.

A. Maria

Anteontem descobri que preciso sentir. Que precisa doer, e que quando não ta doendo procuro meios de sentir a dor.
Outra tatuagem, outro piercing talvez.
Na verdade eu só descobri que sou ainda aquela criança que ia dormir no meio da melhor brincadeira porque tinha sono, que comia no meio da aula porque tinha fome, ou desejo, que beijava no meio da conversa porque tinha vontade, que gritava no meio do silêncio porque queria quebra-lo, que amava no meio da fúria porque queria viver.
Sou sim a mesma criança. A única diferença é que costumo me vestir de mulher com tanta freqüência que as vezes até esqueço de trocar de roupa. E quando isso acontece me sinto perdida com o caminho na minha frente, me sinto sozinha no meio dos melhores amigos que pude desejar, me sinto com fome tendo devorado três pratos cheios, me sinto com cólicas não estando menstruada, me sinto triste no meio da alegria e me sinto odiada no meio do amor. Mas isso só acontece quando me esqueço de tirar essa roupa que me vês sempre vestida e me mostro como realmente sou.
E é nesse momento que passas a me conhecer, é nesse exato momento que costumo afastar as pessoas. É nessa hora que mostro a você que não podes me dizer coisas que não sentes, e mostro que sou a mesma criança que acreditava na mamãe quando ela dizia que nunca ia se afastar. E é aí que te assusto, pois percebes que sempre acredito em tudo que dizes, mesmo quando em seguida me dizes que era tudo brincadeira, que era tudo mentira. Mas é que para as crianças, não podes prometer o que não será possível cumprir, não se pode declarar o que realmente não sentir, não se pode dizer amar, sem as fazer sentir.
Sim, é essa a dor que preciso sempre sentir. É que dói quando preciso me despir, dói, porque passo tanto tempo com a roupa de mulher que quando resolvo tirar, ela já está tão grudada em minha pele que as vezes demoro dias, semanas, e as vezes meses para conseguir remove-la, e muitas vezes somente por alguns minutos. Sim, dói pra me despir, dói me mostrar inteira, dói porque minha memória (poética, talvez) insiste em rememorar todos que perdi quando me mostrei despida de Ana Maria e virei somente Aninha. Dói porque lembrando dos que perdi, passo a ter certeza que também te perderei e ficarei aqui, mais uma vez sozinha, e mais uma vez vestindo a roupa de mulher que ganhei de presente da vida, e por fim, mais uma vez faço adormecer essa criança que encosta a bochecha no teu braço e aperta só pra dizer que quer que você fique.
Faço ela adormecer.
Até me despir novamente, e amar.

Tem que doer, e queimar. Quando não me queimo não sou feliz. Vinícius dizia que quando se queima não se é feliz. Nisso eu discordo, acho que ele falou isso quando não sentia mais o fogo, e não soube perceber isso.
Acho que para amar, precisa doer, mas não aquela dor que nos faz querer perder, mas aquela dor que nos faz querer, sentir, tocar, beijar, viver. Ouvi dizer que se não existisse a dor, não existiria o prazer. Talvez essa seja a chave.
Amar é sentir a dor, mas é que em seguida o prazer vem na mesma proporção e assim, toda a dor é esquecida. E depois desejada, já que é tão intenso o prazer.
Também anteontem descobri que não sei ficar sem querer. Não sei. Desistam, não sei. E quer saber mais? Também não quero! É, não quero.
Só sei ser assim, só sei viver querendo, e se não for assim, não estou completa. Quando não quero, não sou. Se não quero, não estou. Apenas pareço estar, mas o fato é que não estou.
E não me peçam pra mudar isso, é isso que me faz respirar, é isso que me faz usar aquele perfume que ganhei do meu irmão, é isso que me faz usar um vestido novo, é isso que me faz amassar meus cachos, é isso que me faz usar pó, blush e rímel, e sorri no espelho pra ver se alguém poderia me achar bonita. É isso que eu quero.
Querer o amor, querer amar, querer sentir. Dor e prazer. É isso que me faz querer.
Me querer. Te querer.
É isso.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Morangos.

A. Maria

Ela foi comprar morangos. Vermelhos.
Dizem que vermelho é a cor do amor.
Talvez tenha sido por isso que ela chorou.
Chorou e chora.
Será que perdeu um amor? Ela se perguntava porque destruiu tudo. Podia ser tão lindo.
Pensou isso quando atravessando a rua, viu uma mãe, um pai de duas filhas. Se imaginou ali no lugar daquela dama. Se imaginou com ele ao seu lado.
Pensando assim tudo parece tão fácil. Mas será que não era e ela é que complicou tudo? Ou será mesmo que era insuportavelmente difícil?É certo que esses momentos de incerteza não são freqüentes! Também se fosse ela enlouqueceria. Mas quando eles vêm tudo fica tão cinza. O céu fica tão nublado. E o amor parece ficar com raiva.
Os morangos estavam bem firmes, assim como ela quer estar. Claro que alguns estavam feridos, mas se não existissem as feridas, os inteiros não seriam tão bonitos. A vida não seria tão bonita.
Ela os envolveu com um doce gostoso, e um chocolate duro por cima.
E assim como os morangos, ela decidiu também envolver seu coração, com duas camadas, pra ele ficar bem guardado e preservar seu azedinho, mas com muito doce e chocolate duro por fora.
Vermelho é a cor do amor. Mas o vermelho está sempre protegido por camadas, cabe a ela morder tudo e comer o amor, o azedo, o doce e o duro juntos. E depois cabe a ela, presentear alguém com esse morango que fizera, para que o presenteado morda e coma seu amor, seu azedo, seu doce e amoleça o que é duro. Cabe a ela também descobrir como ele protegeu seu morango, e também come-lo para que os vermelhos dos morangos e do amor, fiquem dentro de cada um deles.
Bem guardado e bem juntinho daquela outra coisa vermelha conhecida como coração.